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História de "PAI JOAOZINHO DA GOMEIA"

História de "PAI JOAOZINHO DA GOMEIA"

 

João Alves Torres Filho

Nasceu em 27 de março de 1914 em Inhambupe, Bahia. Sua família era católica e chegou a ser coroinha da paróquia de sua cidade. Mas o menino parecia realmente já vir predestinado a vivenciar o mundo das tradições religiosas afro-brasileiras, mesmo antes de se iniciar em uma casa de culto.

Na pequena cidade onde nasceu, distante 153 km da capital, aos 10 anos já demons-trava sua forte personalidade, como bom filho de lansã. Aos 17, deixou a família e rumou para Salvador, onde fez de tudo para sobreviver. No armazém onde trabalhou, conheceu uma senhora que muito lhe ajudou e que considerava como sua madrinha. Foi ela quem o levou ao terreiro de Severiano Manuel de Abreu, que recebia a entidade conhecida como Caboclo Jubiabá.

 

MESMO CONSCIENTE DA GENEALOGIA E HIERARQUIA DOS DEMAIS TERREIROS, CONSEGUIU IMPOR SUA AUTORIDADE E SE LEGITIMOU AO LONGO DOS ANOS

Uma das muitas histórias que se conta sobre sua iniciação é o fato de Joãozinho sofrer de fortes dores de cabeça sem explicação ou cura por meio da medicina. Assim que se realizou sua feitura, as dores de cabeça cessaram; teriam sido apenas um aviso de que o menino já vinha com o destino traçado pelos Orixás, que cobravam sua iniciação.

Em torno da figura de Joãozinho da Goméia sempre houve muita polêmica; para muitos, que buscavam formas de criticá-lo, sequer teria sido "feito". Mas há filhas-de-santo de Pai Joãozinho que contam todo o seu processo de iniciação. Uma delas, aos 92 anos declarou ao jornal Correio da Bahia que tinha dúvidas de que, se ele fosse vivo, alguém tivesse coragem de contradizê-Io.

o INíCIO DA TRAJETÓRIA EM SALVADOR
Após a feitura de santo com Severiano Manuel, aos 18 anos Joãozinho já tinha seu terreiro, onde mantinha os padrões do Candomblé de Caboclo e Angola, cultuando Orixás, Encantados e Espíritos de ameríndios. Com a morte de seu Pai-de-Santo, segundo alguns relatos, Joãozinho "refaz" o santo no terreiro do Gantois com Mãe Menininha, de Nação Keto. Começa então a polêmica que cercaria toda a vida de Joãozinho em relação a seus trabalhos no Candomblé a mistura de Nações.

Mas "Seu" João da Pedra Preta foi de fato importante para a consagração do culto de Candomblé Angola e sua popularização. Intelectuais como Jorge Amado e Édison Carneiro projetaram o Terreiro da Goméia para o resto do Brasil. Joãozinho foi importante colaborador de Édison Carneiro durante a realização do II Congresso Afro-Brasileiro, realizado em 1937, em Salvador. Segundo o escritor e pesquisador das tradições africanas, Joãozinho era, aos 24 anos, um Pai-de-Santo que se destacava no ambiente conservador da época. Mesmo consciente da genealogia e hierarquia dos demais terreiros, con¬seguiu impor sua autoridade e seu nome se legitimou ao longo dos anos.

Com relação às polêmicas levantadas por alguns pesquisadores, ou mesmo pais e mães-de-santo da época em torno de sua iniciação e de seus trabalhos como sacerdote pelo fato dele, em seu culto, incorporar também entidades ameríndias - Caboclos e Encantados, assim escreveu a pesquisadora americana Ruth Landes em seu livro 'A Cidade das Mulheres':

"Caboclos não são Orixás, mas Espíritos Encantados, originários das religiões indígenas, sem relação com a África". Os chamados Candomblés de Caboclo eram desprezados pelos povos de Keto sob a alegação de que era preciso preservar a pureza com relação às raízes africanas. Mas a associação e a permanência dos Caboclos nos cultos de Angola não se devia à "falta de pureza" africana. O povo Bantu também tem suas tradições, sendo que a mais forte em sua religiosidade é o Culto aos Ancestrais. Foi para preservar a ancestralidade dos donos da terra - os índios, que esse povo incorporou em seus cultos os Caboclos. Outra citação preconceituosa de Landes: "Há um simpático e jovem pai Congo, chamado João, que quase nada sabe e que ninguém leva a sério, nem mesmo as suas filhas-de-santo ( ... ); mas é um excelente dançarino e tem certo encanto. Todos sabem que é homossexual, pois espicha os cabelos compridos e duros e isso é blasfemo. - Qual! Como se pode deixar que um ferro quente toque a cabeça onde habita um santo!"

AINDA É
SURPREENDENTE HOJE OUVIR FALAR DE UM SACERDOTE DO RITO ANGOLA SENDO LEMBRADO
COM TANTO CARINHO PELO POVO DE SANTO

Mas o que incomodava os sacerdotes em joãozinho era a sua visão de futuro e sua grande contribuição para o crescimento e aceitação do Candomblé em outras áreas da sociedade, como as classes artística e política. Foi um homem que soube muito bem usar sua imagem à frente do tempo, divulgando a si mesmo e a sua roça.

Quantas vezes Joãozinho não afrontou sacerdotes e sacerdotisas ao se apresentar em público com seu Orixá, atitude não aceita e proibidíssima, mas que tornou sua dança famosa e fez dele um bailarino respeitado. Homossexual assumido, não se envergonhava diante de toda a repressão que havia naquelas primeiras décadas do século XX.

Em seu Candomblé Joãozinho era conhecido por incorporar o Caboclo Pedra Preta, entidade indígena. Era praticante do culto de Angola, e jovem ainda enfrentou a supremacia dos cultos Jeje e Nagô na antiga Salvador. Foi também por ser tão jovem e desafiador que acabou provocando nas tradicionais Mães-de-Santo baianas um sentimento de repulsa a seu trabalho - aos 26 anos de idade já havia assumido a chefia de seu terreiro, o primeiro, que ficava na Ladeira da Pedra. Logo depois, mudou-se para a rua que o tornaria famoso - a Rua da Goméia - que ficava no bairro de São Caetano, Cidade Baixa, onde tocava Angola e Keto, o que aumentava ainda mais o desprezo por seu nome.

Mas a verdade é que Joãozinho da Goméia se tornou um Pai-de-Santo famoso em uma cidade dominada pelas mulheres, e em torno de sua trajetória criou-se muita lenda. Mas sempre foi muito respeitado por seus inúmeros filhos-de-santo, com quem sempre foi muito rígido e autoritário.

Segundo Edison Carneiro, escritor e pesquisador das tradições africanas, Joãozinho era, aos 24 anos, um Pai-de-Santo que se destacava no ambiente conservador da época.

Joãozinho em seu terreiro na Goméias, entre as décadas de 1930 e 1940 em ritual de Candomblé Angola.
 
O QUE INCOMODAVA OS SACERDOTES EM JOÃOZINHO ERA A SUA VISÃO DE FUTURO E SUA GRANDE CONTRIBUiÇÃO PARA O CRESCIMENTO E ACEITAÇÃO DO CANDOMBLÉ EM OUTRAS ÁREAS DA SOCIEDADE, COMO AS CLASSES ARTíSTICA E POLíTICA

 

A MUDANÇA PARA O RIO DE JANEIRO

Sua fama como Pai-de-Santo atingiu realmente o auge com a mudança para o Rio de janeiro, onde se instalou na cidade de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Ainda é sur-preendente hoje ouvir falar de um sacerdote do Rito Angola sendo lem¬brado com tanto carinho pelo povo de santo. Sua voz rouca, firme e afinada, saudava de Exu a Oxalá, e foi o mais importante agente na época em que começou a divulgação de termos usados no Candomblé por meio da mídia e das artes, que sempre foram seus grandes aliados. Ao ir para a região Sudeste com seu culto, Joãozinho da Goméia sabia da importância e das vantagens de tornar conhecidos os cultos afro-brasileiros. E sua influência se estendeu para outros estados; segundo pesquisa realizada em 1983, dos 24 mais antigos terreiros da capital e do litoral paulistas, oito haviam sido fundados por seus filhos e filhas-de-santo.


Da década de 1950 em diante Joãozinho já era muito famoso no Rio de Janeiro e, até sua morte, em 1971, era o Pai-de-Santo mais conhecido do Brasil. Apesar de tudo, nunca con-seguiu ser unanimidade entre o povo de santo - para muitos era um transgressor das ordens do culto e falava demais, características de um filho dos Orixás guerreiros Oxossi e lansã.

Há uma passagem que ficou fortemente marcada em sua trajetória desafiadora aos costumes da época o Carnaval de 1956, quando saiu pelas ruas fantasiado de "vedete Arlete" e foi duramente criticado e repreendido pelas maes-de-santo da Bahia e pela Federação Umbandista do Rio de janeiro, o que acabou lhe rendendo uma matéria na revista "O Cruzeiro", cujo título era: "Joãozinho da Goméia no Tribunal da “Umbanda". Em entrevista, o polêmico pai-de-santo de¬monstrou sua forte personalidade ao repórter, ao ser perguntado se sua atitude ao sair fantasiado de vedete não chocava os regulamentos do Candomblé. - "De nenhuma maneira. Primeiro, porque antes de brincar pedi licen?a ao meu "Guia", segundo, porque o fato de ter me fantasiado de mulher não implica em desrespeito ao meu culto, que é democrático. Os Orixás sabem que somos feitos de carne e osso e toleram superiormente as inerências da nossa condição humana, desde que não abusemos do Iivre arbítrio" .

Com relação as lalorixás baianas, Joãozinho se referia a todas com certo rancor, por nunca terem aceitado sua condição como importante sacerdote do culto. A única a quem se referia com mais respeito era Mãe Menininha, pois sempre manteve um relacio¬namento um pouco melhor com ela. Sobre Mãe Senhora, na época poderosa sacerdotisa do lIê Axé Opô Afonjá, certa vez disse: "Conheço Senhora, mas nunca tive maior contato com ela, e não lhe sou simpático. É um tipo de mulher muito orgulhosa; não é bem orgulho, é um pouco de ignorância ... ".
Joãozinho estabeleceu-se definitivamente no Rio de Janeiro em 1946, com apenas 32 anos de idade, quando já era bastante conhecido na Bahia. Sua festa de despedida foi assunto comentadíssimo na época - montou, no Teatro jandaia, um espetáculo com danças típicas do Candomblé, apresentando-se como um excelente bailarino.

Nem é preciso dizer que essa comemoração também acabou gerando controvérsia no meio do povo de santo, que sempre criticava os "desmandos" do babalorixá-artista. Mas, segundo relatou o próprio Joãozinho a um jornal carioca, sua mudança para o Rio se deu por acaso, quando foi à cidade de Duque de Caxias para "dar comida" ao santo na casa de uma de suas filhas. "Depois de concluído o ritual, voltei para a Bahia, mas não tive sossego; os amigos insistiam para que eu voltasse ao Rio e não tive outra saída senão mudar de vez para Caxias. Cheguei, gostei e fui ficando". Naquele momento, a Baixada Fluminense estava se tornando um grande reduto de terreiros dedicados aos cultos afro-brasileiros. Mas, como tudo a respeito de joãozinho da Goméia, sobre a sua mudança para o Rio de janeiro também pairam outras histórias. Uma delas diz que, ao desafiar seu Caboclo que o avisara que aquele não era o momento certo de mudar-se para o Rio, acabou dando tudo errado e ele chegou a ser preso, tendo que voltar para a Bahia. Ele esperou então, até que o Caboclo disse: ':Agora é a hora". Joãozinho foi definitivamente para o Rio e se deu bem. Na verdade, muitas histórias se construíram em torno do mito e ficou difícil desassociar a figura de Pai-de-Santo do lendário "joãozinho da Goméia".

Assim que fundou seu terreiro em Duque de Caxias, toda a beleza e riqueza de seus rituais chamaram a atenção. Várias pessoas passaram a freqüentar sua casa, e não só o povo de santo - todos, dos mais diferentes segmentos sociais, queriam aprender mais sobre o Candomblé. Joãozinho tornou-se famoso e tinha uma clientela que vinha das mais altas camadas da sociedade carioca. Nas festas mais importantes sempre havia uma área nobre dedicada a receber os mais influentes - políticos da Baixada Fluminense. Conta-se que na época, até a sogra de Juscelino Kubitschek frequentou suas festas. A exemplo dos políticos, muitos artistas também passaram a se interessar pelo Candomblé e a frequentar sua casa, pois ele próprio, fora das atividades religiosas, também era um artista e participou de diversos shows folclóricos como dançarino no Cassino da Urca, mostrando aos que não conheciam as danças sagradas dos Orixás. Em todos os relatos conhecidos, Joãozinho sempre foi muito elogiado como bailarino.

Com a chegada de Joãozinho da Goméia ao Rio de janeiro, a Nação Angola se viu devidamente instalada em Caxias, ganhando sua merecida importância. Mesmo para aqueles que nunca aceitaram ou simpatizaram com ele, admitem que foi o grande respons?vel pela expansão do Candomblé no Sudeste, a partir de 1950. Formou milhares de filhos-de-santo que fundaram seus próprios terreiros em São Paulo e no Rio de janeiro. Até hoje essas casas têm orgulho em dizer que são da raiz da Goméia:

Hoje em dia a verdadeira Goméia não existe mais. Depois de sua morte, em 1971, o terreiro em Salvador, no bairro de São Caetano e o de Duque de Caxias, não foram mantidos. O Caboclo Pedra Preta, sua entidade mais famosa, não teve um sucessor para representá-Io.
Seus problemas de saúde começaram em 1966, quando teve um derrame cerebral; talvez já fosse uma manifestação do tumor que o levaria à morte em 1971. Mas, segundo os membros de sua casa, a proximidade de sua morte já havia sido anunciada, mas não identificada a tempo. Na última festa que fez para lansã, esta teria relutado muito para se manifestar. Isso aconteceu também diversas vezes com o Caboclo Pedra Preta, que por quatro vezes sacudiu Joãozinho, mas não incorporou. Isso aconteceu pouco antes de sua viagem para São Paulo, onde viria a fazer sua passagem, durante cirurgia para retirada de um tumor cerebral. Quanto à cirurgia, Joãozinho havia concordado, pois, segundo filhas-de-santo que estiveram ao seu Jado durante a luta contra a doen?a, Pai Joãozinho desejava que se cumprisse a vontade de Deus.

A descendência de Joãozinho da Goméia ? maior no Rio e em São Paulo do que na Bahia. Após sua morte, o terreiro em Duque de Caxias passou por uma disputa de poder - uma menina de dez anos teria sido indicada para dar continuidade à Casa. Houve divergência interna e o terreiro acabou extinto. Em Salvador, na Rua da Goméia, o lugar onde ergueu sua roça foi tomado por uma imensa caixa d'água de concreto, instala¬da pela companhia de saneamento básico da cidade. Mas as lembran?as do "Pai da Goméia" continuam vivas para os mora¬dores mais antigos, e sua memória continua preservada nas muitas histórias contadas a seu respeito, por aqueles que o conheceram bem de perto.

 


LP lançado em 1966 por Vinicius de Moraes e Baden Powell, com ritmos e temas afro-brasileiros.

Baden Powell e Vinicius de Moraes fizeram um samba em homenagem ao Caboclo Pedra-Preta:

"Viola quando toca, faz Pedra Preta chegar Viola quando toca, faz Pedra Preta sambar
O pandeiro diz: Pedra Preta não samba aqui não A viola diz: Pedra Preta não sai daqui, não
Pedra Preta diz: pandeiro tem que pandeirar Pedra Preta diz: viola tem que violar
O galo no terreiro, fora de hora cantou Pandeiro foi-se embora e Pedra Preta gritou:
Olô pandeiro, Olô viola!"

Joãozinho em capa da revista "O Cruzeiro", em 1967. A reportagem:
"Joãozinho da Goméia e os segredos do Candomblé" mostrava as belas vestes
de Joãozinho e suas filhas-de-santo.

 

A outra versão da iniciação de Joãzinho da Goméia no Candomblé (Depoimento da Mãe Criadeira do terreiro de Duque de Caxias)

"João Alves saiu do interior da Bahia ainda menino, junto com os pais, que queriam se estabelecer em Salvador. O menino João passou a trabalhar gratuitamente para o padre da paróquia da cidade (seu sonho era ser padre). Segundo informações de filhos-de-santo mais antigos, Joãozinho mesmo

dizia que na época, ainda menino, não gostava de nada que se relacionasse com o Candomblé, achava que era coisa de 'gente doida'. Mas um dia os Orixás lhe chamaram e aí Pai João ficou muito doente, sofrendo de fortes dores de cabeça. A partir daí não tinha mais jeito, foi feito no Candomblé de Caboclo para Oxossi e lansã pelo Encan¬tado Jubiabá, que trabalhava com Mestre Severiano".

Nesta foto, João Alves Torres sai pelas ruas do Rio de janeiro vestido como a "vedete Arlete", no carnaval de 1956, o que gerou muitos comentários e críticas por parte do "povo de santo".
 

Pai Joãozinho, durante filmagem de "Copacabana, Mon Amour"

O filme mostra o cenário do Rio de Janeiro em plena década de 1970, onde a protagonista Sônia Silk circula, entre barracos, nos morros e terreiros de Candomblé da Baixada Fluminense. Ela sonha ser uma cantora da Rádio Nacional e sofre porque costuma ver espíritos em toda parte por onde anda. Aí entra o Pai-de-Santo, a quem ela procura para livrá-la dessa aflição - Joãzinho da Goméia, no papel dele mesmo.

Joãozinho da Goméia e a Igreja

Desde menino, sempre freqüentou a igreja e era amigo de padres e freiras. Era devoto de Nossa Senhora Aparecida e nunca deixou de comparecer às ceri¬mônias católicas. Mas jamais permitia que se misturasse Candomblé e religião ca¬tólica. Costumava dizer: "Não confun¬dam Candomblé com Igreja. Oxalá é Oxalá, e Jesus Cristo é Jesus Cristo".

 

A prisão ao chegar ao Rio de Janeiro, em 1946

Segundo um neto de santo da Casa da Goméia em Ca)d as , ao chegar ao Rio de Janeiro para dar comida ao santo de uma de suas filhas, Joãozinho acabou cau¬sando certo receio em Pais-de-Santo que já tinham seus terreiros no local, que se sentiram constrangidos diante da vinda do aclamado "Rei do Candomblé" de Salvador.

Estes fizeram uma série de oferendas e depositaram na porta do palácio do Catete, sede do Governo federal e residência do presidente Getúlio Vargas.
No dia seguinte, ao saber da chegada do famoso Pai¬de-Santo baiano ao Rio de Janeiro, Getúlio manda prendê¬-lo. As filhas-de-santo que vieram com ele correram para a casa do Zelador de santo Agenor Miranda Rocha, para que este fizesse um trabalho para livrar João da prisão. Pai Agenor pede que entreguem o trabalho para o Babalorixá João da Goméia, telefona para Getúlio Vargas, seu amigo pessoal, e Joãozinho no mesmo dia é solto, voltando a Salvador imediatamente.

joãozinho , tocando para o Caboclo Pedra Preta
 

Joãozinho dança para os Deuses

O terreiro de Joãozinho da Goméia em dia de festa se transformava em uma maravilhosa passarela por onde desfilavam suas filhas-de-santo: imponentes senhoras, orgulhosas com seus belos torços na cabeça e suas longas e rodadas saias brancas.

No grande salão, decorado com bandeirinhas e muitas luzes, havia um mezanino somente para gente ilustre, sempre repleto de autoridades e convidados, todos esperando o momento da triunfal entrada de joãozinho da Goméia - o Rei do Candomblé, com sua bela lansã, a rainha dos ventos, raios e tempestades. A entrada do sacerdote no salão empolgava todos os presentes: Ele vinha dançando maravilhosamente, com uma bacia de fogo na cabeça.

laôs, Ogans e atabaques, que batem seu ritmo de chamada aos deuses africanos, vibram enquanto as filhas-de-santo entram em transe, são recolhidas à camarinha e voltam ricamente vestidas e adornadas, representando suas divindades.

A festa no mezanino - espécie de tribuna, era regada a pratos típicos baianos, petit fours, doces e champanhe. A casa de Joãozinho era um ponto de encontro de gen¬te importante na sociedade cario¬ca da época, e cada convidado levava sempre o melhor presente para mostrar que era frequentador da "Casa da Goméia".

Joãozinho dança em transe, com a bela paramentação da deusa lansã
Segundo uma filha-de-santo de Joãozinho da Goméia, no início de sua atuação como pai-de-santo, ainda muito jovem, aos 18 anos, este tinha verdadeiro temor de seu Caboclo Pedra Preta.
Certa vez, ainda em Salvador, quando vinha descendo a ladeira de uma rua perto da casa de Jubiabá, o Caboclo Pedra Preta começa a falar com Joãozinho instruindo-o sobre as ordens do dia. O babalorixá, apavorado, começou a correr, gritando coisas sem nexo. Seu pai-de-santo, jubiabá, vendo a cena segura João pelo braço e o chama à razão, levando-o para dentro da casa de culto em que havia sido feito no intuito de acalmá-lo.

Nas festas em seu terreiro, antes de ter início o toque, uma filha-de-santo trazia sempre uma botija de água e um prato com farofa de azeite que era posto no chão no meio do terreiro. Era o chamado despacho de Exu, ou o Ipadê de Exu, acompanhado de três ou sete pontos, ritual indispensável para que o homem das encruzilhadas não atrapalhasse a festa.
Houve um movimento interessante no início da década de 60 no Brasil: foi uma urgência na busca incansável por símbolos nacionais, e o que se desejava naquele momento eram símbolos afro-brasileiros. "Fazer santo", tanto em Salvador quanto no Rio de ja¬neiro era moda, e não podia ser em qualquer bairro não, tinha de ser no centro da cidade de Salvador por mães e pais de santos reconhecidos nacionalmente, e na Baixada Fluminense, prefe-rencialmente no terreiro de Joãozinho da Goméia, em Duque de Caxias.

De meados dos anos 50 até o começo dos 60, Joãozinho da Goméia, que havia muitos anos, transferira sua roça de Salvador para Caxias, no Rio de Janeiro, visitava constantemente São Paulo onde era amigo de influentes líderes umbandistas. Muitos dos primeiros personagens do Candomblé de São Paulo foram por ele iniciados ("feitos", na linguagem de santo). E feitos aqui em São Paulo, embora este primeiro começo tenha contado também com filhos de Joãozinho feitos na Goméia do Rio e na originária Goméia da Bahia. Linhagem e Legitimidade no Candomblé Paulista - Reginaldo Prandi

Édison Carneiro praticamente projetou o nome de Joãozinho da Goméia, nos apontando para um fato interessante: a troca de favores, muito comum às casas de culto tradicionais baianas. Em troca de uma entrada fácil e uma conscientização clara das coisas do Candomblé, que interessariam ao jovem pesquisador aprender para que auxiliassem seu trabalho como jornalista e etnólogo, este deveria divulgar o "bom nome" de João da Goméia, tornando sua casa de culto conhecida entre os inte¬lectuais, estrangeiros e o povo do santo.

Uma curiosidade: Eram colados nas paredes dos mercadinhos de Nilópolis, Nova Iguaçu e Duque de Caxias papéis e cartazes onde se divulgava todo o calendário semanal do terreiro de Joãozinho, como por exemplo: Segunda-feira: dia de distribuições de sopas e agasalhos aos pobres, festa para Obaluaiê e Gira para Exus. Quinta-feira: dia de festa à lansã, Oxossi e Ogum. Sexta e Sábado: Festas de confirmação de laôs e atendimento médico, sábado à tarde. A comunidade aparecia em peso, e mesmo os que não freqüenta-vam o Candomblé iam para ver as festas.
Segundo a Mãe Criadeira da Goméia, Joãozinho possuía uma espécie de diário onde Iistava os contribuintes de seu terreiro, dando à sua casa de culto a personificação de uma instituição. Grande parte daqueles que freqüentavam não eram filhos-de-santo, e sim pessoas que estavam naquele momento fascinadas pelo grande movimento de popularização do Candomblé na cidade do Rio de janeiro. A noção de pertencimento ao culto dos Orixás era visível no terreiro da Goméia, era uma espécie de associação mística ao cam-po religioso, em que os laços de associação do indivíduo com a forma de culto se redefinia a cada divulgação das festas de Candomblé, tanto na imprensa carioca como nos mercados populares da Baixada Fluminense.

Dentro do Enredo do Carnaval 2007, em que a Acadêmicos do Grande Rio homenageou a cidade de Duque de Caxias, Joãozinho da Goméia foi tema quarto setor da escola - 'A fé de um po valente', que contou sua trajetória popularizador dos cultos afro-brasileiros no Rio de janeiro, especialmente na Baixada Fluminense. "Sua transferência para Duque de Caxias fez com que sua fama como pai-de-santo atingisse contornos nacionais"

1971 MORRE O GRANDE BABALORIXÁ
JOÃOZINHO DA GOMÉIA

O dia em que o Candomblé chorou!

19 de março de 1971 - o dia da semana era sexta-feira, fatídico para alguns, benéfico para outros. O local, Rua General Rondon, 360, bairro Copacabana, no município de Duque de Caxias, Baixada Fluminense, Rio de Janeiro. Já passava das nove horas e o relógio em breve faria soar as dez badaladas. De repente, um silêncio se faz sentir; as poucas pessoas que ali se encontravam se entreolham assustadas. Parecem hipnotizadas, presas ao chão. Na face de cada uma, a palidez, o medo.

No enorme galpão, uma imagem de lansã se desprende da parede atrás de uma imponente cadeira. Cai ao chão e a deusa se desfaz em dezenas de pedaços. Um vento frio sopra e redemoinhos se formam levantando poeira; o céu se cobre de nuvens pretas como se vestisse luto, onde antes brilhava o solou se via o azul.
O vento uivante aumenta de intensidade e as pessoas começam a se mexer. Muitos diriam, depois, que os gemidos do vento mais pareciam lamentos de Omolu, o guardião dos cemitérios.
Assustados e talvez adivinhando as razões de tão estranhas manifestações da Mãe Natureza, alguns correm ao pátio: o pé de jurema, a árvore sagrada, começa a murchar, a canjica azeda minutos depois de colocada aos pés do Orixá. Nesse instante todos tiveram conhecimento do que estava ocorrendo e lágrima silenciosas começaram a descer nas faces negras e a molhar as vestes brancas. Os atabaques gemeram e choraram e, no gemido de seu couro, transmitiram ao Céu e à Terra os lamentos de uma dor que se espalharia por todo o Brasil.

Tudo isso se passou na roça de joãozinho da Goméia. No mesmo instante, a 400 quilômetros de distância, o Rei do Candomblé, maior propagador dos ritos afro-brasileiros, mais antigo e respeitado sacerdote do Brasil, deixava o mundo dos vivos, desencarnara e partira para o Reino de Oxalá - o Pai Supremo.

São Paulo, Hospital das Clínicas, 9 horas e 50 minutos, sexta-feira. Num leito branco, um homem moreno, forte, grandalhão e de finos traços trava uma batalha com a morte. Seu rosto é tranqüilo, aparentando uma enorme paz interior. Nas têmporas, os cabelos ralos já agasalham a neve dos anos que sobre eles passaram: retratam as dores, os sacrifícios, as lutas e os sofrimentos.
Ao seu lado os médicos se empenham para impedir os desígnios da morte, que quer levar mais um tributo e eles não concordam. O combate é desigual: de um lado, os fracos conhecimentos e as desvalidas forças do ser humano; do outro, os misteriosos poderes extraterrenos.

A luta é árdua; há muitas horas o combate se trava num vaivém irritante. Em momentos, parece que os médicos conseguirão enganar a morte; em outros, a vitória pende para esta. De um lado, os médicos de branco, cor tão querida e amada por aquele homem que ali se encontra sem poder participar da batalha. Ele, que durante toda a vida foi um valente que nunca fugiu à luta, não sabe que do outro lado o espectro da morte tenta arrebatar-lhe a vida, a alma. Seu espírito, este sim está vendo tudo, sabe até o destino que lhe é reservado, só que não pode intervir. Ele, o espírito, o motivo da batalha, dela não pode participar. Altos desígnios, mais fortes do que ele, presidem todos os detalhes do combate. Como humilde servidor desses desígnios, só lhe cabe apreciar os lances. Mesmo sabendo que no final o prêmio do vencedor será ele próprio.
A batalha chega ao fim - João Alves Torres Filho, o doente que os médicos não conseguiram salvar - talvez porque Oxalá houvesse decidido em contrário¬entrega sua alma ao Mestre Supremo.

Joãozinho da Goméia morreu aos 57 anos, 40 dos quais dedicados ao Candomblé. Desencarnou no dia de São José, oito dias antes de completar 57 anos. Por estranha coincidência, no dia de sua morte sua roça em Duque de Caixas iria promover o Lorogun - uma das grandes cerimônias do Candomblé que significa o fechamento do terreiro para o período da Quaresma.

Em dezembro ele pretendia promover uma grande festa para lansã, sua protetora. Oxalá, porém, decidiu que sua missão na Terra estava terminada.

Quando seus filhos-de-santo receberam a notícia de sua morte, o pranto e a dor tomaram conta de todos. Uma histeria coletiva jamais vista fora de um terreiro levou quase à loucura milhares de pessoas que se aglomeravam em frente ao hospital. Mulheres choravam, entravam em transe, desmaiavam; os homens murmuravam preces por sua alma e gritavam: - Pai, me leva com você!

Ao se confirmar a triste verdade, os atabaques começaram a marcar em toques fúnebres, anunciando a dor da perda irreparáveI. Todos ficaram inconsoláveis, mas mesmo assim lembraram de render tributo a Oxalá, pedindo que recebesse o filho amado de braços abertos. Para eles, o grande sacerdote apenas desencarnara, ganhando uma estrada de estrelas para chegar ao Reino de Oxalá.

Há muito joãozinho da Goméia se encontrava doente, e nos últimos meses queixava-se de fortes dores de cabeça. Os médicos encontraram a causa das terríveis dores do Rei do Candomblé: Na parte frontal da cabeça, em local de difícil exploração, formara-se um tumor, e sua localização tornava perigosa qualquer intervenção cirúrgica. Após comunicarlhe os perigos que correria, indagaram se deviam ou não operá-Io. Joãozinho não pensou nem um segundo para responder: - Podem operar, seja feita a vontade de Deus.

Às 8 horas e 15 minutos de sábado o corpo foi liberado para o transporte ao Rio de janeiro. No carro funerário foi o corpo, atrás caravanas de I 5 federações de São Paulo e dezenas de carros de fiéis. O motorista diria depois: - Em 19 anos de profissão, nunca vi tanta gente acompanhar um corpo.

"Se eu morrer, quero que todos os meus filhos-de-santo continuem fazendo caridade. E que se esforcem para que o Candomblé do Brasil seja, cada vez mais, encarado com seriedade e respeitado por todo o mundo"

 

DEPOIS DE SUA MORTE, O TERREIRO EM SALVADOR, NO BAIRRO DE SÃO CAETANO E O DE DUQUE DE CAIXAS, NA BAIXADA FLUMINENSE NÃO FORAM MANTIDOS. O CABOCLO PEDRA PRETA, SUA ENTIDADE MAIS FAMOSA, NÃO TEVE UM SUCESSOR PARA REPRESENTÁ-LO.